Parecer pericial
Preâmbulo
Dr. Jefferson Torres da Silva, CRM-DF 33.612, intimado aos autos na condição de auxiliar da justiça como perito, conhece deste processo 0718321-73.2024.8.07.0020 que trata de questão cível de obrigação de fazer na qual se questiona aspectos técnicos da doença de base obesidade assinalada à RAQUEL OLIVEIRA FREIRE, sexo feminino, atualmente com 39 anos incompletos, neste parecer tratada doravante como paciente.
Dos quesitos
As partes não explicitaram quesitos, mas implicitamente restou questionado conhecer se a condição de obesidade aludida à paciente é pretérita a adesão ao plano de saúde, que presume-se ter ocorrido em 20/06/2023, tendo em vista o documento 209140576 - Petição Inicial
deste processo.
Discussão
Na petição inicial alude-se ao peso, estatura e ao conhecido índice de massa corpórea (IMC), como sinônimo diagnóstico de obesidade da paciente. Ocorre que “o IMC é um bom apontador, mas não totalmente correlacionado com a gordura corporal1”, apesar de ser capaz de indicar, per si a condição de sobrepeso, entidade diversa mas fundamental no diagnóstico de obesidade.
Explico: a doença obesidade se faz pela soma dos achados de sobrepeso e sua origem adipócita cumulativa, isto é, de excessivo tecido adiposo, um mecanismo evolutivo de diversas espécies inclusive a humana para armazenamento energético na forma lipídica, i.e. gordurosa.
Há indivíduos com IMC elevado e baixíssimo percentual de gordura ou quase nenhum acúmulo de adipócitos, casos em que o mero índice alto não se traduz em obesidade. “Além disso, o IMC não é indicador do mesmo grau de gordura em populações diversas, particularmente por causa das diferentes proporções corporais1”.
Ou seja, conhece-se o diagnóstico de obesidade primeiro pelo IMC elevado e, depois, por sua causa gordurosa, normalmente crônica, desenvolvida de forma paulatina. O famoso artigo da The Lancet Obesidade, uma bomba-relógio2 de 1998 bem aludia: “Tanto a genética como os fatores ambientais modificam o peso corporal […]” e “a obesidade é amplamente ambiental, por causa do descompasso entre os antigos genes humanos e o ambiente moderno é o que vai direcionar estratégias terapêuticas e preventivas” (grifo e tradução livre nossa).
Assim, firma-se um primeiro posicionamento pericial de que a paciente apresenta, de forma documentada, a condição de sobrepeso desde 18/10/2023, data do mais antigo exame da série fornecida, um ecocardiograma, com IMC de 47.9Kg/m2. A classificação quanto ao grau de obesidade de acordo com IMC é atualmente alvo de debates científicos controversos, razão pela qual desqualifico neste parecer sua importância mas destaco que resta consensual a relação entre gravidade da doença e o valor do índice3. O valor de 47.9kg/m2 certamente se traduz em quadro grave de sobrepeso, agravador da suspeita de obesidade. A literatura médica é incapaz de ilustrar um caso de obesidade com progressão a tal índice em menos de uma década a não ser por obesidade hipotalâmica4 ou por reativação alimentar inadequada após anorexia5, ambas situações excluídas para a ilustração do caso da paciente, pois ná registro de tais síndromes, exceto se documento superveniente prove contrário.
Tendo em vista a cronicidade típica da doença em tela, sua instalação, início ou primeiros sintomas são sempre discretos, normalmente detectados por distúrbios nos padrões de consumo alimentar com preferência por palatáveis, polifagia e polidipsia, bem como sono irregular, estresse, ansiedade etc. Desta forma, é difícil firmar precisamente um momento de aquisição da moléstia. Porém, é possível dizê-la recente ou antiga com facilidade.
Constata-se que as repercussões da obesidade se dão em diversos órgãos e podem ser observados, como consequência do convívio com a doença, o surgimento de lesões articulares, infecções de pele e tecidos moles, acantose nigricans, distúrbios do sono, depressão, gastroenterites diversas infecciosas ou não, refluxo gástrico com ou sem repercussão esofágica, déficit neurológico sensorial, principalmente de visão, disautonomias como hipertensão e síncopes, má perfusão tecidual distal em membros, queda na qualidade de vida e aumento de índice de causas externas com impacto na saúde (acidentes e incidentes).
Distúrbios do sono
No caso em baila, dispõe-se de uma polissonografia realizada em 28/02/2024 com 13 eventos respiratórios, todos obstrutivos sem causa central, ou seja, um clássico achado da obesidade desenvolvida, já instalada, mantida e não curada. A recomendação dos neurofisiologistas responsáveis pelo laudo de uso de dispositivo respiratório de pressão continuada (CPAP) e a completa ausência de registros centrais (causas neurológicas) corroboram para que assinalemos com segurança que as apneias de sono da paciente decorrem de complicação do excesso de tecido adiposo ou ainda, em última análise, da obesidade. Nos casos congênitos de déficit de sono por apneia, o diagnóstico é infantil e costumam terminar em operações otorrinolaringologistas como remoção de tecidos ou correção de desvios, o que não parece ser o caso da paciente.
Apud Zimberg et al6, “atualmente a síndrome da apneia obstrutiva do sono é reconhecida como um preditor independente para a obesidade (Steiropoulos e colaboradores, 2010; Ge e colaboradores, 2013; Kim e colaboradores, 2013), e esta, por sua vez, caracteriza-se como o principal fator de risco para a síndrome, estando presente em aproximadamente 70% dos indivíduos apneicos (Ho e Brass, 2011) […] em obesos mórbidos, por exemplo, a prevalência pode chegar a 80% nos homens e 50% nas mulheres (Salvador e colaboradores, 2004). Isso estabelece um link bidirecional entre a síndrome apneica e obesidade”. Por link bidirecional, entende-se desenvolvimento de gravidade de uma comorbidade de acordo a outra, ou seja, associação temporal e de intensidade sobrepostas, sendo este tempo normalmente medido em anos.
Ainda de acordo com Zimberg et al6, “Tuomilheto e colaboradores (2012) avaliaram os resultados de 2 anos de follow-up em 71 indivíduos obesos apneicos. Após a intervenção inicial de 12 semanas e 1 ano de aconselhamento nutricional, não foi realizada nenhuma intervenção ao longo do segundo ano.”. O aludido estudo7 traz reversão parcial dos quadros de apneia obstrutiva ao longo de pelo menos dois anos, sendo um de intervenção na obesidade. É notório que a desinstalação do quadro, mesmo que parcialmente, reflita seu tempo de instalação, isto é, pode se afirmar, com alguma segurança, que um exame polissonográfico revelando apneia do sono em obeso trata-se de um quadro de obesidade instalada há também pelo menos dois anos ou, na hipótese mais segura, há mais de um ano.
Dislipidemia
Noutra frente, como apontado por Gusmão et. al 8, a esteatose hepática é paripasso da obesidade no que tange a aquisição dos quadros. É sabido que o metabolismo lipídico disfuncional é o grande precursor do comprometimento de hepatócitos. O quadro normalmente decorre de anos de exposição a dislipidemia e resistência insulínica que provoca errôneo acúmulo de reservas energéticas no fígado.
Nesta lide, a paciente apresentou como mais antigo exame laboratorial aquele realizado em 17/07/2024, onde não apresentou dislipidemia, isto é, seus níveis de HDL, LDL e colesterol totais não eram os típicos do obeso. Confrontando tal achado com uma ecografia abdominal realizada em 06/12/23 apontando esteatose hepática, surgem três caminhos lógicos:
- a paciente apresentanva dislipidemia e esteatose por hábito alimentar ou de etiologia alcoólica e, no interstício de mais de 6 meses cessou por completo o abuso dietético com absoluta cura, o que é improvável; ou
- a paciente nunca foi dislipidêmica e a esteatose se instalou por causas a investigar, quadro também improvável uma vez que passou por cirurgia abdominal e, neste cenário foi investigada pela equipe de anestesiologistas que alertariam tal anormalidadea; ou
- apresentou melhora significativa dos níveis lipídicos e de triglicerídeos após a intervenção cirúrgica, hipótese de maior sentido.
Resistência insulínica
Apesar de adequada para comparação diagnóstica com outras doenças que tem a obesidade como consequência, a resistência insulínica deveria estar documentada como série de exames para ter valor correlatio temporal, motivo pelo qual não evoco esta entidade especificamente neste parecer.
Bioimpedância
Exame peculiar do diagnóstico discutido, a bioimpedância isolada no tempo é incapaz de tecer uma história da aquisição do sobrepeso, mas tem papel crucial em determinar se sua natureza atual é muscular ou gordurosa. A paciente se submeteu a bioimpedância em 25/03/2024 com resultado apontando 71% de gordura na composição de massa corpórea. Novamente, inferir o momento de aquisição diagnóstica é impossível apenas com tal exame, porém este vem corroborar com a qualidade do sobrepeso por obesidade grave.
Conclusão
Este parecer é uma análise médica em caráter especializado sobre endocrinologia a partir de retrospecção lógica dedutiva onde, para fins jurídicos, se tenta esclarecer uma condição diagnóstica no tempo.
Os documentos apresentados são escassos nos principais achados marcadores do estabelecimento inicial da doença, sejam eles a medida de circunferência abdominal1, das coxas, insulinemia sérica seriada, triglicerídeos e frações de colesterol da primeira década de vida versus atuais e exame físico detalhado do abdome e de dobras cutâneas.
Porém, os mesmos documentos são ricos na descrição de complicações da obesidade, contando com bioimpedância, ultrassonografia abdominal e polissonografia, todos realizados sob a indicação de investigar colaterais da patologia. Estas complicações demonstram uma idade ao diagnóstico, conforme discorrido.
Assim, concluo por afirmar que é seguro dizer que a paciente portava o diagnóstico de obesidade há pelo menos um ano antes da data de 20/06/2023, com algum manejo insuficiente no ínterim e com possível melhora dos achados laboratoriais e de imagem tanto em momentos de dieta tanto como após a intervenção cirúrgica, como a realização de um Y de Roux, objeto desta lide.
Respostas aos quesitos
A obesidade da paciente é pretérita a adesão ao plano de saúde em 20/06/2023 porque suas complicações são achados desenvolvidos com métrica temporal anual e, dado o grau dos achados, pode se concluir por no mínimo mais de um ano de condição de obesidade prévia instalada ou em desenvolvilmento.
Brasília, 03 de outubro de 2025.
CRM-DF 33.612
Dr. Jefferson T.
Notas
a) Normalmente, a avaliação de risco cardiovascular pré-operatória demanda correlação entre achados de exames de imagem prévios, como a esteatose, e exames de marcadores, como colesterol e suas frações.
-
ABESO. Associação Brasileira para o Estudo da Obesidade e da Síndrome Metabólica. Diretrizes brasileiras de obesidade 2016 / ABESO - Associação Brasileira para o Estudo da Obesidade e da Síndrome Metabólica. – 4.ed. - São Paulo, SP. ↩︎ ↩︎ ↩︎
-
BRAY, G. A. Obesity: a time bomb to be defused. Lancet (London, England), v. 352, n. 9123, p. 160-161, 1998. ↩︎
-
KRAL, John G. Morbidity of severe obesity. Surgical Clinics, v. 81, n. 5, p. 1039-1061, 2001. ↩︎
-
Lustig RH. Hypothalamic obesity after craniopharyngioma: mechanisms, diagnosis, and treatment. Front Endocrinol (Lausanne). 2011 Nov 3;2:60. doi: 10.3389/fendo.2011.00060. PMID: 22654817; PMCID: PMC3356006. ↩︎
-
Madden, S., Miskovic-Wheatley, J., Clarke, S. et al. Outcomes of a rapid refeeding protocol in Adolescent Anorexia Nervosa. J Eat Disord 3, 8 (2015). https://doi.org/10.1186/s40337-015-0047-1 ↩︎
-
ZIMBERG, Ioná Zalcman et al. Relação entre apneia obstrutiva do sono e obesidade: uma revisão sobre aspectos endócrinos, metabólicos e nutricionais. RBONE-Revista Brasileira de Obesidade, Nutrição e Emagrecimento, v. 11, n. 64, p. 250-260, 2017. ↩︎ ↩︎
-
Tuomilehto, H.; Gylling, H.; Peltonen, M.; Martikainen, T.; Sahlman, J.; Kokkarinen, J.; Randell, J.; Tukiainen, H.; Vanninen, E.; Partinen, M. Sustained improvement in mild obstructive sleep apnea after a diet- and physical activity-based lifestyle intervention: postinterventional follow-up. Am J Clin Nutr. Vol. 92. Núm. 4. p. 688-96. 2010. ↩︎
-
GUSMAO, L. V.; RAMOS, A. C. R.; REMIGIO, G. C. B.; BAIARDI, V. C. S.; GONÇALVES, B. P. Doença Hepática Esteatótica associada à disfunção metabólica. Brazilian Journal of Health Review, [S. l.], v. 7, n. 4, p. e71622 , 2024. DOI: 10.34119/bjhrv7n4-173. Disponível em: https://ojs.brazilianjournals.com.br/ojs/index.php/BJHR/article/view/71622. Acesso em: 28 sep. 2025. ↩︎